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Acordo de comércio UE-EUA: As transnacionais contra a democracia /Carlos Santos

15/12/2014
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ttipeueeusEstados UnidosEsquerda – [Carlos Santos] Está a ser negociado o acordo de comércio livre entre a UE e os EUA, com grande opacidade e nas costas da maioria da população. Este tratado afetará profundamente a vida dos cidadãos e imporá os interesses das transnacionais sobre a democracia.

O acordo de comércio UE/EUA é um projeto em negociação entre a União Europeia e os Estados Unidos, para criar uma zona de livre comércio nos países abrangidos. O projeto, no entanto, é de facto muito mais do que isso e tem profundas implicações na vida das pessoas dos dois blocos e também na vida de toda a humanidade. As suas implicações têm um alcance mundial, afetando até o próprio planeta.

As regras que vierem a ser estabelecidas no tratado transatlântico terão um alcance internacional, muito mais amplo que a área de vigência. Este acordo de comércio pode tornar-se no meio primordial para impor a todo o mundo o caminho “definido pelos interesses da UE e dos EUA”.

O tratado transatlântico é conhecido por variados nomes e siglas, com o mesmo significado: TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), TAFTA (Transatlantic Free Trade Area), APT (acordo de parceria transatlântica). Na sua negociação, entre a comissão europeia e o governo norte-americano, estão amplamente envolvidos os lóbis mais poderosos da indústria e da finança da UE e dos EUA. Esses lóbis têm centenas de técnicos para cuidar de impor os seus interesses em todo o percurso negocial. Ao contrário, a informação à população é escassa e nos grandes meios de comunicação as notícias e análises são raras.

Neste projeto, têm primazia os interesses das transnacionais e do sistema financeiro dominante. Com este tratado, os maiores grupos económicos mundiais poderão até, através de uma qualquer das suas empresas, processar “os Estados que não se verguem às normas do liberalismo”.

Neste acordo de parceria, o derrube das barreiras aduaneiras ao comércio surge, muitas vezes, como pretexto para impor a queda de “barreiras não aduaneiras” e que as transnacionais, e a elite financeira e política, consideram como obstáculos ao livre comércio. Nestas barreiras ao comércio, encontram-se os direitos económicos e sociais, a proteção da saúde e do ambiente, e até a liberdade cidadã e a soberania do povo. Por cima de todos os direitos e legislações em vigor estarão os “direitos” das empresas (leia-se transnacionais, grandes bancos e grupos económicos) ao comércio, ao lucro e até às expectativas de negócio. É isto que está em causa com o tratado transatlântico. É um tratado contra a própria democracia, as constituições e legislações dos Estados abrangidos e que, a ser aprovado, passará por cima das decisões democráticas dos povos. A política ficará limitada à escolha de opções que estejam em sintonia com os interesses dominantes, mesmo que essas opções choquem com os direitos humanos. Será um tratado que vigorará por cima das legislações e constituições dos diferentes Estados abrangidos e que só poderá ser alterado mediante o acordo dos dois blocos.

É difícil encontrar uma ameaça tão grande à liberdade.

Porquê este tratado?

Este acordo que está a ser negociado, com a participação dominante dos maiores lóbis empresariais do mundo, garantirá um amplo mercado para as grandes empresas e bancos norte-americanos e europeus e estabelecerá as regras de acordo com os seus interesses. Essas regras visam garantir a prevalência dos interesses das empresas privadas sobre qualquer empresa não privada, a limitação dos direitos do trabalho, direitos sociais, económicos e ambientais, mas também os chamados “direitos de propriedade intelectual”. Estes “direitos” serão a defesa exacerbada e por longo tempo de patentes privadas, com a garantia de rendas extraordinárias prolongadamente, que muitas vezes chocarão com os direitos das pessoas, mas que garantem também uma renda extra das transnacionais da UE e dos EUA em relação a quaisquer empresas do resto do mundo.

A garantia de um grande mercado, de salários baixos, da minimização das normas de proteção da saúde e do ambiente, da longa durabilidade das rendas provenientes das patentes, da supremacia dos interesses das empresas privadas sobre empresas públicas ou cooperativas, o estabelecimento de impedimentos à nacionalização de empresas e setores económicos, a garantia de privatização em todos os setores, incluindo dos bens públicos são as regras que as transnacionais da UE e dos EUA querem impor tanto num lado como no outro do Atlântico. E, naturalmente, as regras que imperarem neste imenso espaço e mercado serão as regras que esta elite empresarial tentará impor em todo o mundo.

Em busca da hegemonia

Desde o início dos anos 90, com a queda da ex-URSS e do antigo bloco da Europa de leste, não só o capitalismo liberal apareceu triunfante no mundo inteiro, ao ponto do livro de Fukuyama se ter tornado um bestseller, como os Estados Unidos se tornaram a hiperpotência dominante no mundo. Porém, a crise iniciada em 2007 deixou claro que a hegemonia norte-americana estava em causa.

A globalização armada do tempo de George W. Bush não garantiu a persistência da supremacia dos EUA, bem pelo contrário. A crise financeira mundial, que explodiu com a crise do subprime, tornou claro que os EUA atravessam grandes dificuldades no terreno económico, e não só, e que a União Europeia se tinha tornado uma potência de segunda ordem, nomeadamente face à China.

Os dois blocos (UE e EUA) têm, pois necessidade de procurar impor a sua supremacia face aos restantes concorrentes mundiais, nomeadamente face aos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

O tratado transatlântico insere-se nesta disputa pela hegemonia imperial no mundo. Como assinala o excelente estudo “A Brave New Atlantic Partnership“, “A evidência fornecida por este relatório sugere que o TTIP [tratado transatlântico] pode ser entendido como o projeto político e de classe de uma elite do Atlântico, cujo objetivo parece ser a inversão das políticas sociais no Ocidente e a preservação da liderança europeia e dos EUA internacionalmente”.

O referido estudo salienta também que, uma vez que EUA e UE detêm cerca de metade do PIB mundial e um terço do comércio global, a criação desta zona de comércio livre terá um grande impacto “para além do Atlântico”.

E o documento destaca ainda: “Os alvos do projeto são as economias emergentes, incluindo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (muitas vezes referidos como países BRIC), cujas economias em crescimento são vistas como uma ameaça à hegemonia global à UE e aos EUA”.

As regras que estão a ser discutidas no tratado transatlântico vão para além das regras vigentes na Organização Mundial do Comércio, que são prejudiciais para os povos, e visam mesmo ultrapassar impasses existentes na OMC, devido à oposição de muitos países às normas que EUA e UE pretendem impor. Lori Wallach cita vários casos de penalizações da OMC aos EUA e à UE, dá o exemplo das “multas de centenas de milhões de euros” pela proibição da importação de organismos geneticamente modificados (OGM) por parte da UE. A diretora da Public Citizen sublinha que a “novidade” introduzida pelo tratado transatlântico (assim como pelo tratado transpacífico – ver subtítulo abaixo) é que estes tratados “permitiriam às multinacionais processar, em seu próprio nome, um país signatário cuja política tenha um efeito restritivo no seu dinamismo comercial”.

Indo até para além do que está em vigor na OMC e com o peso que UE/EUA têm na economia e no comércio mundiais, as regras que vierem a ser estabelecidas no tratado transatlântico, terão assim um alcance internacional, muito mais amplo que a área de vigência. Este acordo de comércio pode tornar-se no meio primordial para impor a todo o mundo o caminho “definido pelos interesses da UE e dos EUA”.

Assistimos assim ao “regresso” do atlantismo não já no terreno militar, mas na disputa pela hegemonia no campo do impropriamente chamado “Soft Power“. E isto, não obstante a NATO ter um papel decisivo nesta disputa pela hegemonia global. Afinal a NATO constitui basicamente um acordo militar entre EUA e UE com alcance mundial, atualmente reforçado.

Acordo Transpacífico

No entanto, os EUA não estão a negociar apenas o tratado atlântico com a UE, simultaneamente estão em curso as negociações para o estabelecimento de um acordo transpacífico, envolvendo para além dos EUA outros 10 países: Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Singapura e Vietname.

Os perigos do tratado transatlântico também estão presentes nas negociações ao acordo transpacífico. Por exemplo também nele “os governos podem ser alvo de ação judicial por parte uma empresa estrangeira quando esta considerar que foi afetada nos lucros esperados”.

Este acordo é claramente um elemento importante dos EUA para a sua disputa pela hegemonia do mundo com a China.

Os acordos transatlântico e transpacífico constituem pois peças essenciais da disputa da hiperpotência norte-americana pela hegemonia global. E, tanto num caso como no outro, prevalecem os interesses do 1% mais rico do planeta contra os direitos dos 99% do planeta.

É tremenda a força política, económica e mediática que está a impulsionar estes dois tratados, mas a história já nos mostrou, nomeadamente nas últimas décadas, que o seu estabelecimento não é inevitável. Na oposição a estes tratados contra a liberdade dos povos estão afinal os direitos de 99% da humanidade e a sua rejeição. Lembremo-nos da rejeição do AMI (acordo multilateral de investimentos) ou da ALCA (área de livre comércio das Américas) para uma avaliação da possibilidade de rejeição do acordo de comércio UE/EUA. Estes casos mostraram também que a decisão dependerá da mobilização cidadã.


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