Esquerda – Não só centenas de milhares de empregos estão ameaçados em inúmeros setores que serão afetados pela redução de tarifas aduaneiras entre a UE e os EUA, como também está em causa o direito dos europeus a trabalhar em condições dignas, a se organizarem e a se defenderem numa Europa fortemente atingida pela austeridade e o desemprego. Extrato do relatório “A Brave New Transatlantic Partnership”, publicado pela rede Seattle to Brussels (S2B).
Nos grandes meios de comunicação social tem vindo a ser dito e repetido: um acordo de livre comércio entre a União Europeia e os Estados Unidos deverá permitir às duas potências, de uma e da outra parte do atlântico, sair do marasmo económico.
No seu discurso sobre o estado da União de 13 de fevereiro de 2013, o presidente Obama anunciou: “vamos lançar negociações para uma vasta parceria transatlântica de comércio e de investimento com a União Europeia – porque um comércio atlântico livre e justo permitirá criar milhões de empregos de qualidade na América”.
O comissário europeu do comércio Karel de Gucht fez eco destas declarações, afirmando: “Para a Europa, o impacto deste acordo que tentamos concluir deverá ser da ordem de 0,5% a 1% do PIB, com a questão chave de criar centenas de milhares de empregos… Ele trará novos clientes para os nossos produtores, matérias mais baratas para os nossos produtores e uma maior concorrência que tornarão as nossas empresas mais eficazes”1.
No entanto, se considerarmos os números mais de perto, percebemos que os benefícios económicos do tratado estão largamente sobrestimados. De facto, não só estas promessas em termos de criação de riqueza e de emprego provavelmente não serão realizadas, mas sobretudo as políticas de proteção social e do direito do trabalho, consideradas como “barreiras não tarifárias” no comércio transatlântico, poderão ser seriamente prejudicadas pela adoção deste acordo.
Previsões exageradas de criação de riqueza e de emprego
Com base em estudos de think tanks financiados pela indústria, a comissão europeia anunciou que o tratado poderá criar dois milhões de empregos e aumentar o comércio transatlântico até 120 mil milhões de dólares em cinco anos 2. Subvencionado por alguns dos mais importantes atores da finança (que deverão beneficiar largamente com o tratado) como Deutsche Bank, BNP Paribas, Citigroup, Santander, Barclays, JP Morgan, o Centre for Economic Policy baseado em Londres afirma que os ganhos para a economia europeia de um acordo transatlântico poderá chegar a 119 mil milhões de euros por ano, um ganho audaciosamente traduzido por um aumento de rendimento de 545 euros por ano em média para uma família europeia de quatro pesssoas 3.
Para o professor Clive George, economista sénior da universidade de Manchester, que elaborou numerosos estudos de impacto das negociações comerciais para a comissão europeia, estas previsões devem ser tomadas com toda a cautela, considerando que “os modelos económicos em que estão baseadas estas previsões foram considerados como “altamente especulativos”4 por vários economistas de renome. George nota que numerosas previsões entusiásticas sobre os benefícios económicos do tratado estão baseadas num aumento de crescimento de 0,5%, previsão que o próprio estudo de impacto da comissão europeia qualifica de “otimista”. Segundo este estudo, é mais provável que o aumento seja da ordem de 0,1% (isto é, um aumento de 0,01% por ano num período de 10 anos). Este aumento, como salienta o professor George, é “trivial, e a comissão europeia sabe isso 5“.
Numa nota semelhante, o departamento de estudo de impacto do Parlamento Europeu criticou a metodologia do estudo da comissão sobre o acordo transatlântico, pela ausência de “dados quantitativos” necessários para compreender a origem dos resultados, por “uma avaliação insuficiente dos riscos e inconvenientes” relacionados com o acordo e pela “ausência de verificação quanto à credibilidade do modelo utilizado, que parece estar baseado num conjunto de hipóteses idealizadas”6.
Para o jornalista Jens Berger, “os ‘crimes’ cometidos em nome da econometria têm tanto a ver com a ciência como a meteorologia tem a ver com miudezas de frango. Os modelos económicos cada vez mais complexos substituem a lógica e a abordagem científica e não são nem lógicos, nem científicos. É sempre possível encontrar um “instituto” capaz de produzir os resultados desejados por via deste tipo de modelos.7”
Para prever as prováveis consequências de novas negociações comerciais, o método mais fiável, se acreditarmos em Clive George, consiste em considerar as experiências dos precedentes acordos comerciais 8. Um método certamente mais fiável… mas cujos resultados se revelam menos reluzentes. Porque se virmos cuidadosamente os resultados do acordo de comércio livre norte-americano (NAFTA), que tem inúmeras semelhanças com o TTIP, os resultados são claros: a criação de emprego não existiu… Aconteceu mesmo o contrário.
Acordo de livre comércio norte-americano: um milhão de empregos destruídos nos EUA
Quando o NAFTA foi lançado em 1993, o presidente Clinton prometia a criação de vários milhões de empregos, como consequência do aumento do comércio com o Canadá e o México. A câmara de comércio dos Estados Unidos gaba-se de que o NAFTA permitiu multiplicar por 3,5 o comércio na região (para até 1,2 biliões 9 de dólares). Ela reconhece no entanto que as promessas de criação de emprego não se materializaram 10. Segundo uma análise do Economic Policy Institute(EPI), o número de empregos criados nos Estados Unidos pelo aumento das exportações não compensa as perdas de empregos derivadas do aumento da concorrência e da importação de produtos estrangeiros. O número total de empregos destruídos está calculado em cerca de um milhão (879.280 empregos destruídos) – em comparação com os 20 milhões de empregos prometidos inicialmente 11.
Este balanço provisório não tem em conta a pressão para a descida dos salários dos trabalhadores norte-americanos induzida pelo NAFTA, que contribuiu para a sua relativa estagnação desde meados dos anos 70. Segundo o Centre for Research on Globalization, o NAFTA permitiu às empresas norte-americanas mobilizar fundos de investimento para criar unidades de produção ao longo da fronteira entre o México e os Estados Unidos (devido ao facto de os salários, o direito de trabalho e as normas ambientais serem muito menos exigentes do lado mexicano), enquanto que as fábricas fechavam nos Estados Unidos 12. Às grandes empresas, isto permitiu lucros consideráveis, mas conduziu a uma deterioração das condições de trabalho de um lado e do outro da fronteira. Em consequência, aos trabalhadores norte-americanos foram impostas descidas de salários e o desemprego aumentou, enquanto que os trabalhadores mexicanos se viram privados das suas oportunidades de emprego tradicionais e forçados a trabalhar em condições próximas da escravatura para empresas norte-americanas instaladas no México 13. Segundo Jeff Faux, presidente da EPI em Washington, “a experiência [do NAFTA] mostra que um vasto acordo de livre comércio […] que não dê tanta prioridade ao social e às condições de trabalho como à proteção dos investidores e financeiros não é viável”14.
Setores inteiros ameaçados de reestruturação
Apesar dos modelos otimistas, o estudo de impacto da comissão europeia salienta mesmo que, como consequência do aumento do comércio com os Estados Unidos, “é de prever um choque inicial nos setores mais expostos e que deverá levar à sua reestruturação”. Por exemplo, setores como “a produção de carne, fertilizantes, etanol e açúcar” estão ameaçados pelas “vantagens competitivas da indústria norte-americana face à sua homóloga europeia e pelas consequências negativas que são de prever para a indústria europeia”15.
Segundo o estudo, a produção de máquinas elétricas e equipamentos de transporte, assim como o setor metalúrgico e o de madeira e papel, serviços às empresas, comunicação, serviços pessoais 16. Como conclui o estudo de impacto, “poderá haver custos de ajustamento substanciais e prolongados. É claro que mesmo que a mão de obra tenha a possibilidade de afluir aos setores em que a procura aumenta, haverá setores em que as perdas de emprego serão importantes e onde os trabalhadores terão mais dificuldade em serem reconvertidos para os setores em expansão, em particular por causa da inadequação das suas competências”17. Atenuar essas consequências implicará ter em conta medidas sociais preventivas; mas não está prevista nenhuma medida deste tipo, nem no estudo de impacto, nem no mandato de negociação. Pelo contrário, a comissão considera que os rendimentos gerados pelo acordo serão suficientes para os Estados gerirem os danos por si próprios 18.
Há contudo um risco de regiões inteiras da União Europeia terem de pagar a fratura social provocada pela assinatura do acordo transatlântico, o que poderá aumentar ainda mais a brecha entre os Estados ricos e pobres da UE – entre o seu centro e a sua periferia 19: os setores em que os Estados Unidos são mais competitivos na exportação são precisamente aqueles em que os países da periferia têm interesses “defensivos” – como a agricultura. A integração na União Europeia (e a adoção do euro) já teve como consequência uma desindustrialização parcial dos países mediterrânicos 20. No período atual, as políticas macroeconómicas deveriam ter como objetivo proteger os cidadãos europeus em vez de expô-los à concorrência internacional.
A corrida aos mínimos sociais: menos direitos, mais obrigações para os trabalhadores
Através da harmonização das normas e regras entre as duas potências transatlânticas, o direito do trabalho também poderá ser posto em causa. Os Estados Unidos têm recusado categoricamente ratificar algumas das normas mais elementares em matéria de direito de trabalho, no quadro da organização internacional do trabalho (OIT), incluindo as convenções sobre a liberdade de associação e de ação sindical. Ao mesmo tempo, os recentes ataques da comissão europeia aos salários, no quadro da crise do euro, demonstram as disposições particularmente ameaçadoras da UE em matéria de normas de trabalho 21. O TTIP poderá servir de instrumento para reformar a legislação de trabalho na Europa e “harmonizá-la” com a dos Estados Unidos. Isto inclui, por exemplo, uma disposição antissindical tristemente célebre, sob uma designação enganadora (The Right to Work), que restringe sistematicamente a liberdade dos trabalhadores a se associarem – com consequências desastrosas para os seus direitos 22.
Segundo a federação sindical AFL-CIO, a legislação norte-americana contribuiu para a corrida aos mínimos sociais em termos de salários, de normas de saúde e de segurança, à medida que os estados eram lançados na concorrência para atrair capitais 23. Quando a comissão europeia anuncia que deseja fazer o inventário da legislação de trabalho de forma a “reduzir o risco de ver o investimento norte-americano diminuir na Europa em benefício de outras regiões do mundo”24, há muito a temer que a concorrência entre os estados membros da União Europeia seja exacerbada pela assinatura de um acordo transatlântico. Afinal, a legislação europeia do trabalho não foi identificada como “medida não-tarifária” que é um obstáculo ao comércio transatlântico 25?
Assim, não só centenas de milhares de empregos estão ameaçados em inúmeros setores que serão afetados pela redução de tarifas aduaneiras entre a União Europeia e os Estados Unidos; como também está em causa o direito dos europeus a trabalhar em condições dignas, a se organizarem e a se defenderem numa Europa fortemente atingida pela austeridade e o desemprego.
Notas:
1 De Gucht, K. A European Perspective on Transatlantic Free Trade. Discurso na European Conference em Harvard Kennedy School. 2 de março de 2013. http://europa.eu/rapid/press-release_SPEECH-13-178_en.htm#PR_metaPressRelease_bottom.
2 Comissão Europeia. Estudo independente que descreve os benefícios do acordo de comércio UE-EUA. Memo/13/211. 12 de março de 2013. http://europa.eu/rapid/press-release_MEMO-13-211_en.htm.
3 Centre for Economic Policy (2013). Redução das barreiras transatlânticas ao comércio e ao investimento – Uma Avaliação económica. Relatório do projeto final. Londres. http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2013/march/tradoc_150737.pdf.
4 George, C. and Kirkpatrick, C. (2006) Questões metodológicas na avaliação do impacto da política comercial: experiência do programa de avaliação do impacto de sustentabilidade da Comissão Europeia. Avaliação de Impacto e Avaliação de Projetos. 24 (4). pp 325-334.
5 George, C. What’s really driving the EU-US trade deal? 8th July 2013. http://www.opendemocracy.net/ourkingdom/clive-george/whats-really-driving-eu-us-trade-deal.
6 European Parliament Impact Assessment Unit (2013). Initial appraisal of a European commission Impact Assessment. European Commission proposal to authorise the opening of negotiations on a Transatlantic Trade and Investment Partnership between the European Union and United States of America. http://www.europarl.europa.eu/delegations/en/studiesdownload.html?languageDocument=EN&file=92710.
7 Berger, J.Freihandelsstudie – Scharlatanerie im pseudowissen- schaftlichen Gewand, 18 June 2013 (Translated from German). http://www.nachdenkseiten.de/?p=17671.
8 George, C. and Kirkpatrick, C. (2006).Op Cit.
9 1,2 milhões de milhões – 1.200.000.000.000.
10 The US Chamber of Commerce (2013). NAFTA Triumphant – Assessing Two Decades of Gains in Trade, Growth and Jobs. p. 9. http://www.uschamber.com/sites/default/files/reports/1112_INTL_NAFTA_20Years.pdf.
11 Economic Policy Institute (EPI) (2003). NAFTA – Related Job Losses Have Piled Up Since 1993. http://www.epi.org/economic_snapshots/entry/webfeatures_snapshots_archive_12102003/.
12 Centre for Research on Globalization (2010) The North American Free Trade Agreement (NAFTA) Resulted in Increasing Unemployment in the US. Montreal. Canada. http://www.globalresearch.ca/the-north-american-free-trade-agreement-nafta-resulted-in-increasing-unemployment-in-the-u-s/20444.
13 Ibid.
14 Faux J. (2011) NAFTA at Seven : Its Impact on Workers in All Three Nations. Washington D.C. http://www.policyalternatives.ca/sites/default/files/uploads/publications/National_Office_Pubs/nafta_at_7.pdf
15 European Commission (2013) Impact Assessment Report on the future of EU-US trade relations. pp 37-38. http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2013/march/tradoc_150759.pdf
16 Ibid.
17 Ibid. p. 53.
18 Ibid.p. 47.
19 EuroMemo Group (2013). The deepening crisis in the European Union : The need for a fundamental change. http://www2.euromemorandum.eu/uploads/euromemorandum_2013.pdf.
20 Ibid.
21 For an overview of the attacks on social rights in the context of the European review of economic and fiscal policy, see for example: http://euobserver.com/news/32462 and http://euobserver.com/opinion/120319.
22 Greenhouse, S. ‘States seek laws to curb power of unions’. The New York Times. 3 January, 2011.
23 See AFL-CIO’s page : http://www.aflcio.org/Legislation-and-Politics/ State-Legislative-Battles/Ongoing-State-Legislative-Attacks/ Right-to-Work-for-Less ; and Deakin, S. and Reed, H. (2000). ‘The contested meaning of labour market flexibility’. Social Law and Policy. Oxford.
24 European Commission (2013). Impact Assessment of TTIP. p. 52. http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2013/march/tradoc_150759.pdf.
25 Ecorys (2012). ANNEXES – Non-tariff measures in EU-US trade and investment – An economic analysis. Final Report. The Netherlands. p. 45. http://trade.ec.europa.eu/doclib/docs/2009/december/tradoc_145614.pdf.
Artigo traduzido para francês por Frédéric Lemaire para Les Dessous de Bruxelles e para português por Carlos Santos para esquerda.net.